O poder da palavra



Rodrigo Constantino

"Então, quando olho para trás, a única coisa que me resta, na qual me reconheço, que consegue circunscrever um perímetro e um percurso como o contorno de um corpo que vive e respira, são as minhas palavras." (Roberto Saviano)

Confesso que não sou muito chegado ao Carnaval. Talvez porque o veja como simples vulgaridade. Ou talvez – o que é mais provável –, porque tenha implicância com tudo aquilo que é "pão e circo" para manter alienadas as vítimas do poder organizado. Fugi, portanto, para uma casa de praia, somente com minha mulher e filha, desligando-me do evento mais adorado pelos cariocas. E passei boa parte do tempo na ótima "companhia" de Roberto Saviano, com seu livro A beleza e o inferno, que devorei com prazer. O Carnaval veio à mente mesmo contra minha vontade.

Saviano, como todos sabem, vive sob escolta policial desde que escreveu Gomorra, livro que desnuda a máfia italiana, retirando-lhe todo seu glamour presente em obras como O Poderoso Chefão e Os Bons Companheiros. Seu novo livro, uma coletânea de textos, fala sobre o poder da palavra, a força que tem a literatura contra regimes opressores, contra o crime organizado. As palavras, quando verdadeiras, amedrontam até os mais poderosos. Lênin considerava as palavras armas mais perigosas à sua revolução totalitária do que fuzis. E ele tinha razão.

Como diz Saviano: "Apenas um confronto crítico leal permite crescer e melhorar, enquanto o pensamento totalitário que se esconde atrás do cinismo de certo mundo midiático é meu pior inimigo". O cinismo "é a armadura dos desesperados que não têm consciência de seu desespero". E seus textos são justamente um soco na cara de todos os cínicos do mundo. O Nobel Mário Vargas Llosa acha que devemos agradecer Saviano, pois ele "restituiu à literatura a capacidade de abrir os olhos e as consciências". De fato, não é possível ler seus relatos e permanecer indiferente a eles, fingindo que a realidade exposta ali não existe.

Por que pessoas como Saviano e tantos outros desafiam o poder estabelecido com suas palavras, mesmo reconhecendo o perigo que isso representa? Em parte, eles simplesmente não conseguem deixar de fazê-lo. Mas também há outra possibilidade, levantada pelo próprio autor: o desejo de passar sua mensagem adiante, de influenciar o futuro da humanidade, de mudar as coisas. Quem viveu o inferno de perto, quem viu campos de concentração, guerras, assassinatos praticados por mafiosos, corre o risco de perder a fé nos homens. Afinal, são todas obras humanas, demasiado humanas. Mas, por outro lado, a certeza de que existem leitores que se emocionam, se revoltam, se sensibilizam com seus relatos, tornando o inferno de alguns o inferno de todos, faz com que esses autores possam seguir em frente, com esperança.

"Se tive um sonho foi o de influenciar com as minhas palavras, demonstrar que a palavra literária ainda pode ter um peso e o poder de mudar a realidade", explica Saviano. Um dos maiores obstáculos nesta busca, entretanto, é a covardia de muitos. Ele pergunta: "Como faço para dizer à minha terra que pare de ser esmagada entre a arrogância dos fortes e a covardia dos fracos?" Um mecanismo de defesa comum é se fechar em suas vidas simples, normais, feitas de pequenas coisas, enquanto uma verdadeira guerra ocorre do lado de fora. Saviano pergunta: "O que fizemos para ficar tão cegos? Tão subjugados e resignados, tão submissos?"

O medo individual atua como um álibi, e isola cada um de nós, cedendo espaço para os criminosos, os corruptos. As pessoas vão se habituando ao estado caótico das coisas, repetem que tudo sempre foi assim, e acabam resignadas. Ignoram que o poder de escolher existe, e que podemos escolher a liberdade. Mas para tanto, antes é preciso não mais aceitar como destino natural aquilo que, ao contrário, é obra dos homens. Saviano foi um desses que escolheu lutar, mesmo pagando um elevado preço por isso, tendo que viver como um prisioneiro, escondido e com escolta, sempre sob o risco de sofrer um atentado fatal. Não se trata de martírio idealista, mas de coragem para não sucumbir a uma vida de submissão e covardia.

Para tanto, faz-se necessário dar voz à verdade, para que esta se espalhe, ganhe o mundo. "Uma verdade dita na solidão não é outra coisa senão uma condenação em muitas partes deste país", ele escreve. Mas, "se repercute nas línguas de muitos, se é protegida por outros lábios, se se torna alimento partilhado, deixa de ser uma verdade e se multiplica, assume novos contornos, torna-se múltipla, e não mais atribuível apenas a um rosto, a um texto, a uma voz". Lembrei de V de Vingança ao ler estas belas palavras.

Roberto Saviano contra as máfias italianas, Salman Rushdie contra o fanatismo islâmico, Anna Politkovskaia contra Putin, todos estes e muitos outros foram escritores que apostaram no ser humano e no poder da palavra, sabendo que estas sempre vencem, custe o que custar e leve o tempo que levar. Os poderosos podem deter o escritor, podem colocar uma bala em sua nuca, explodir seu carro, decretar uma fatwa na esperança de calar, de impedir a disseminação da palavra. Mas, como lembra Saviano, "enquanto existir o leitor, nada poderá acontecer às palavras de um escritor". E escrever, para essas pessoas, foi um atestado de confiança para com o homem, para com as novas gerações. A esperança de um novo percurso humano, melhor que o atual, ainda que nunca perfeito.

E por que este livro, lido em pleno Carnaval, fez-me recordar desta festa que ganhou ares de simples baixaria carnal? Não poderia ser mais evidente a ligação: até quando vamos tolerar calados e resignados, em silêncio ou cumplicidade, estas máfias poderosas que oferecem pão e circo aos alienados enquanto roubam mais ainda, concentram mais poder ainda? Até quando?
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Published on March 07, 2011 15:25
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